Dia 10.
Felicidade
Eu sempre
acabei me fechando para coisas que não deveria. Bati a porta na fuça de quem
não merece e fiz cara feia pra quem não tinha culpa de nada. Uma vez desliguei
o telefone na cara do rapaz da pizzaria, como se a culpa do meu leite ter
derramado no fogão fosse dele. Noutra, culpei a vendedora da loja por não
conseguir escolher uma camisa adequada pra festa de aniversário da sexta à
noite. De vez em quando eu sou estúpido demais e quase nunca me dou conta disso
em tempo de ir lá e me desculpar. A vida começou a me oferecer as coisas desde
cedo, mas eu estive sempre ocupado demais. Tapei meus olhos com a tristeza que
insisti em incorporar esse papel de moço abandonado e injustiçado. Uma
reclamação atrás da outra, sempre culpando um desejo não atendido, um sonho não
realizado ou expectativas frustradas. Acho que minha vida sempre se resumiu a
isso e acho que a culpa é mais minha do que dela. No fim das contas, pareço
criança mimada que não ganhou o brinquedo que queria no Natal. Nunca julguei isso exatamente como
certo.
Sempre
estive ignorando algo que me faz bem porque sofrer é mais poético. Sempre tive
essa queda por poesia e literatura, a felicidade só me proporcionava belos
versos quando eu tinha você do outro lado da cama me inspirando com seu
sorriso. Depois que você se virou e foi embora, nada me fez tão feliz a ponto
de sequer escrever uma frase bonitinha pra postar na internet. Você sabe, eu
sou um pobre infeliz como um jegue amarrado. Era inteiramente deprimente,
sozinho e trancado na minha própria solidão, até você vir abrindo a janela da
minha cozinha e deixando a luz me invadir, enquanto você me invadia também.
Depois que adulteci, percebi que a
felicidade sempre esteve explícita aos meus olhos, mas nunca aceitei como
era. Até os 7 anos, eu levantava mais cedo que todo mundo só pra sair pro
quintal e ver o sol nascer. Era uma rotina. Quando falhava, parecia que meu dia
estava incompleto. Nunca precisei de despertador, já era algo natural. Nunca precisei porque eu era feliz
fazendo aquilo. Aos 11 anos,
eu saía pra janela todos os dias às 12h54 pra ver uma menina passando. Ela ia
pra escola ali do lado da minha casa, passava sozinha puxando sua mochila de
rodinhas. Ninguém precisava me lembrar do horário, todos os dias eu estava lá
esperando por ela. Ela nunca nem ao menos me deu um oi, mas eu não me
importava. E me lembrava que
passaria porque eu era feliz estando naquela janela. Com 15 anos, eu jogava basquete
com meu avô no quintal da casa dele. Todo fim de tarde de quinta-feira eu ia
pra lá e a gente se esbaldava num joguinho bem calmo, já que ele não era mais
um menino como eu. Minha mãe nunca precisou me lembrar do meu compromisso, eu
já sabia pra onde deveria ir. Quando seu médico o proibiu de se esforçar
fisicamente, minha vida ficou um pouquinho mais vazia. Esvaziou porque eu era feliz
jogando a bola de um lado pro outro, enquanto ele ria de sua própria falta de
habilidade. Aos 23 anos eu ia
à biblioteca na esquina da rua de minha faculdade toda semana procurar algo
novo pra ler. Eu entrava em um mundo diferente e conhecia gente diferente e ia
descobrindo coisas diferentes. Eu poderia ser um herói, um caçador, um viajante
apenas folheando livros que eu descobria sozinho. Quando a biblioteca fechou
por não conseguir mais manter os custos de manutenção, um pedaço do meu mundo
se foi junto. Se foi porque eu
era feliz sendo um personagem diferente por semana sem deixar de ser eu mesmo. Aos 25 anos eu conheci uma garota. Ela
estava numa livraria no cento da cidade e tinha os olhos tão profundos e
misteriosos que me chamavam a desvendá-la todos os dias. E eu buscava desvendá-los todos os
dias. Com o tempo, essa
garota tornou-se tão essencial que eu mal conseguia imaginar um dia inteiro sem
ela. E ela foi se apropriando de minha vida e moldando meus gostos e pegando
minhas manias e usando minhas camisas e sendo a pessoa mais incrível que um dia
eu poderia ter pensado em conhecer. E a gente foi virando nós, até ela ir embora
e se tornar um nó. E eu me vi chorando baixinho no meio da noite de sábado,
depois de um dia inteiro de falsas risadas. Chorei
porque eu era feliz a tendo do meu lado.
Foi então
que eu percebi que a felicidade é algo que não depende unicamente das coisas
que possuo ou das pessoas que passeiam por minha vida. Felicidade é o que eu
sou usando as coisas que possuo e tendo as pessoas que tenho. Uma vez eu li que felicidade não é
questão de ter, é questão de ser. Agora que entendo, concordo.
Eu era feliz apreciando o nascer do sol, assim como era feliz vendo aqueles
cabelos negros passando por minha janela todo dia. Eu era feliz jogando a bola
pra dentro da cesta com meu avô, bem como era feliz te vendo recitar os poemas
de Carlos Drummond de Andrade rindo e pulando na minha cama feito criança. E eu
acho que era feliz porque, fazendo tais coisas, eu conseguia ser eu mesmo. Eu,
o Frederico. Poucas coisas na
vida nos proporcionam o encanto de sermos nós mesmos sem qualquer máscara ou disfarce. Hoje eu apenas duvido de tudo e
não tenho certeza de nada. Sou um ser infeliz e amargurado. Não me orgulho, mas
sou. Posso ter muitas coisas agora, mas não as reconheço como produto de felicidade. Se assim sou, a culpa é da incerteza que carrego tatuada em
mim.