Dia 14.
De Repente
Você acorda cedo cinco
dias por semana. Toma a mesma quantidade de café e sai dando um beijo de
despedida em sua esposa. Dá uma carona pra sua filha até a escola. Trabalha até
tarde pelo menos três desses cinco dias. Janta pizza duas vezes por semana. No sábado,
você leva sua filha pro clube enquanto sua mulher dedica um tempo a si mesma no
salão de beleza. No domingo joga futebol com os amigos da faculdade e visita
seus pais na cidade vizinha.
De repente tudo muda de
lugar. Vira de ponta cabeça. Dá a volta e revolta. Seus cabelos estão voando contra o vento porque você passa a remar contra a maré. Sua mulher está
grávida, é um menino. Você começa a trabalhar um pouco mais para garantir o
conforto de mais um sem abrir mão dos demais. Seus dias até tarde no trabalho
passam a ser todos os da semana. Você passou a trabalhar no sábado também e não
leva mais sua filha ao clube, ela agora vai com a mãe da melhor amiga. Seu
filho nasceu com problema respiratório e terá de ser tratado. Você gasta e tem
que repor esse dinheiro. Você não repara que não dá mais atenção à sua filha.
Você passa a trabalhar em casa também. Sua mulher implora por atenção. Você não
reparou que ela chora de vez em quando. Seu filho aprendeu a andar, a falar,
mas você não consegue acompanhar. Sua filha agora vive na casa das amigas, mas
você tá ocupado demais pra perceber. Sua mulher agora chora todos os dias porque tem que lidar com tudo sozinha.
De repente sua vida
tomou rumos nunca antes calculados. Você se encontra na porta do
Café em que você ia com seu avô aos domingos, mas está indo lá agora porque não
vai dar tempo chegar em casa pro almoço. Você não se lembra que ele contou que
nesse Café pediu a sua vó em casamento nem lembra que, seguindo o exemplo,
aí você pediu a filha da vizinha em namoro, que agora é sua esposa. Você nem
percebe que seus modos mudaram e seus costumes se transformaram. Aquela sua
mania de pentear os cabelos pra trás deu lugar ao corte baixo e estilo
despenteado porque é muito mais prático. Você não carrega mais a foto da sua
família na carteira porque desde que seu trabalho triplicou você é obrigado a
carregar diversos cartões de clientes e a foto tomava muito espaço. Você não
percebeu que sua mulher guardou o porta-retratos da sala na gaveta há meses
porque você não se dá mais o trabalho de observar como ela estava linda no dia
de seu casamento. Você não percebeu que sua filha começou a namorar um menino
quase 10 anos mais velho e que a comida está com menos sal desde que sua esposa
descobriu a pressão alta porque você não para mais pra comer em casa e nem
notou os exames que ela deixou propositalmente em cima da cama. De repente seus
olhos andam vermelhos porque o trabalho tem tomado o seu horário de sono. Sua
imagem no espelho reflete o homem velho e cansado que você sempre temeu ser.
Seu pijama preferido ficou abandonado no guarda-roupa porque não há mais tempo
de se vestir para dormir. Seus caminhos começam a te levar para um lugar onde
você se transforma naquilo que sempre desprezou. Seu filho demonstra rebeldia a
cada dia que passa e sua filha namora como adulta. Sua mulher chora nitidamente,
você nota, mas finge que não. Não tem tempo pra isso.
De repente você não se
lembra mais qual foi a última música que ouviu prestando atenção, tudo ficou
maquinado e automático, inclusive aquilo que lhe agrada. Você volta atrás em
suas promessas e passa a tratar com grosseria qualquer um que atrase seus
planos. Você brigou com seu filho quando ele ofereceu ajuda em seu trabalho. Você
demitiu sua secretária porque ela te atrapalhou lembrando do seu aniversário de casamento.
Você brigou com seus pais porque eles te ligaram cobrando uma visita que não
acontecia há anos. Você ignorou o pedido de viagem de férias de sua filha. Você
banca o idiota com tudo e todos, porque você é o dono da razão e ninguém tem o
direito de discordar. De repente sua mulher pede o divórcio e você a acusa de
ter um amante e de abandoná-lo em seu momento de necessidade, quando você nem
ao menos olhou pro lado pra ver quem realmente precisava de ajuda. Você ignorou
todos os pedidos de socorro porque no seu mundo não cabe fraquezas. Você deu
seu sangue no trabalho pra dar o notebook de última geração de presente de 15
anos pra sua filha e não percebeu que o que ela queria era que você largasse os
papéis por 10 minutos pra dançar valsa com ela na sua festa de debutante. Sua
mulher saiu de casa. Os documentos do divórcio ficaram em cima da mesa do
escritório, a única maneira de você os encontrar. Você os jogou fora. Você os
rasgou. Você tá chorando como se o mundo estive a ponto do fim. Parece que seu chão está desabando sob seus pés. Você
não quer perder sua família. Tudo o que fez foi para o bem de todos, você
repete isso em voz alta como se uma força maior fosse te ouvir e puxar todos de
volta a você. Você tá ajoelhado no chão do escritório implorando por ajuda.
Você parece mais humano agora.
De repente você tá na
mesa do bar mais vagabundo do bairro se embebedando sem saber o que fazer daí
pra frente. Você não compareceu à audiência e perdeu a guarda das crianças. Sua
ex-mulher está namorando com um amigo de infância. Sua filha tá grávida aos 16.
Seu filho tá chorando na porta de sua casa. Você falta ao trabalho
por três dias seguidos. Você perde o emprego. Você perde as rédeas da própria
vida. Você perde o caminho. Você não se reconhece. Você não se lembra de quando
sua vida começou a acabar.
De repente você percebe que o mundo deu
tantas voltas que você sente náuseas cada vez que olha pra cima. Você parece tentar se reerguer. Você conseguiu
um novo trabalho. Você visita seus filhos uma vez por semana. Você reparou o
quanto sua ex-mulher ficou bonita com o novo corte de cabelo. Você percebeu que
sua filha tá sorrindo com um bebê no colo, mas você não se lembra do nome dele
porque nunca se deu o trabalho de perguntar. Você percebeu que ainda dá tempo
de alguma coisa ser feita. Você passa a andar de bicicleta com seu filho, pega seu neto no colo pela primeira vez, elogia o modo como sua filhinha cresceu, elogia sua ex-mulher, age como um homem. Mas você ainda chora e chora nos ombros de seu filho caçula. Você sente saudade de sua família. Você sente saudade da
sua vida. Mas não dá mais pra voltar. A vida de todo mundo continuou, a sua
deve ser do mesmo modo. É o curso natural da coisa. Você perdeu muita coisa por conta de seus erros. A única coisa que você não
perdeu na vida, é o meu orgulho ao te chamar de pai.
Eu li e gostei, gostei muito. Fiquei praticamente sem palavras, mas achei injusto não deixar um comentário diante de um texto tão bom!
ResponderExcluirInfelizmente, essa é uma história que a gente vê se repetindo por aí cada vez mais, e o que se pode fazer? Pouco, quase nada... Tentar ser diferente apesar das dificuldades.
Você escreve muito bem, parabéns.
Muitíssimo obrigada! Espero que continue acompanhando o Diário. E seja bem-vinda!
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